Matthew Vickery BBC Future
Cerca de meia dúzia de homens estão em frente a um casebre em Hargeisa, na Somalilândia, discutindo aos gritos sobre a qualidade do khat – uma planta com propriedades narcóticas e efeitos relacionados aos da cafeína e da cocaína – que acabaram de receber de um vendedor ambulante.
Clientes chegam e partem rapidamente, pegando rapidamente molhos da planta – de consumo legal, diga-se de passagem -, enquanto digitam rapidamente em seus telefones celulares.
“Precisamos fazer tudo rápido aqui, e pagar com dinheiro demora”, explica Omar, um dos camelôs que faz ponto na rua (e que fala enquanto masca folhas de khat). “Todo mundo fica calmo se consegue comprar seu khat rápido.”
Não há uma cédula ou cartão de crédito à vista, mas isso não quer dizer que a clientela leva a droga de graça. Eles pagaram usando seus celulares, transferindo fundos em uma questão de segundos, no meio de uma rua empoeirada.
Dinheiro em carrinhos de mão
Não há muitas coisas nas quais a Somalilândia pode dizer ser líder neste mundo. Mas pagamentos virtuais parecem ser uma delas.
Autodeclarada independente da Somália desde 1991 – mas ainda sem o reconhecimento da comunidade internacional – ela está no caminho de se transformar no primeiro país do mundo a abolir o dinheiro.
Foto: Matthew Vickery/BBC
Seja em plena rua ou em um supermercado de Hargeisa, o pagamento via celular está rapidamente se transformando em padrão para os pouco menos de 4 milhões de habitantes.
Essa mudança é parcialmente motivada pela rápida desvalorização da moeda local, o shilling, cuja cotação em relação ao dólar é assustadoramente baixa – são necessários 9 mil shillings para comprar um único dólar.
Além de ter sido devastada por uma guerra civil que ainda não foi totalmente resolvida, a Somalilândia também se complicou com uma política monetária por demais atrelada a interesses políticos, o que resultou em seguidas desvalorizações monetárias desde a criação do shilling, em 1994.
Notas de 500 e mil são as mais comuns, e transações simples podem necessitar uma grande quantidade de cédulas. Um exemplo é o fato de cambistas que trocam dólares e euros por shillings usarem carrinhos de mão para transportar a moeda doméstica pelas ruas.
Créditos em celulares
Sem bancos credenciados internacionalmente, e com um sistema financeiro em que caixas eletrônicos são um conceito distante, duas empresas privadas, a Zaad e a e-Dahab, lançadas nos últimos oito anos, criaram uma economia virtual. Valores são depositados nas contas das companhias e convertidos em créditos para telefones celulares, o que permite transações eletrônicas.
“Para comprar um colar desses, por exemplo, você precisa de um ou dois milhões de shillings”, explica Ibrahim Abdulrahman, atendente de uma joalheria, enquanto aponta para o mostruário da loja e ri da ideia de alguém usando papel-moeda para fazer a transação.
“Ninguém pode carregar tanto dinheiro. É muita coisa. Nós nem aceitamos mais shillings, por sinal, só dólares e créditos de celular.”
Mesmo em regiões rurais da Somalilândia essa abordagem está ganhando terreno. O país tem alta taxa de analfabetismo, e a simplicidade e funcionalidade da tecnologia alimentam seu avanço. Pagar requer nada mais que digitar alguns números e um código exclusivo de cada vendedor. Eles estão escritos por toda a parte – em barracas de rua ou mesmo lojas mais requintadas.
E, como não é necessário ter acesso à internet, mesmo os celulares mais rudimentares podem ser usados. Consumidores movem dinheiro de uma conta para a outra usando números e códigos em uma operação tão simples como inserir créditos em um celular pré-pago.
“Essa é apenas a receita de hoje”, explica Eman Anis, uma ambulante de 50 anos que vende ouro em um mercado de Hargeisa. Ela mostra vendas de cerca de R$ 6,2 mil na tela de seu celular. Há apenas dois anos, os pagamentos que ela recebia pelo celular correspondiam a 5% de seu faturamento. Hoje, passam de 40%.
“É muito mais fácil usar o celular, e a empresa cuida de tudo, incluindo taxa de câmbio. Até os mendigos usam Zaad”, diz.
Acessibilidade
Claro que há certo exagero na afirmação acima, mas o sistema de pagamentos realmente trouxe benefícios para as pessoas mais pobres.
No último ano, a Somalilândia foi afetada por uma severa seca que devastou a vida de centenas de milhares de pessoas que dependem da agropecuária. Graças às transferências eletrônicas, elas conseguem receber ajuda financeira de parentes em melhor condição de forma rápida e segura.
Em um país que tem camelos como principal produto de exportação, é surpreendente até empregadores aderindo ao sistema de pagamentos, depositando salários em contas de celulares.
Até porque a difusão dos telefones é larga na Somalilândia. Uma pesquisa de 2016 revelou que 88% dos habitantes com mais de 16 anos possuíam pelo menos um chip de celular. Cerca de 81% dos habitantes de áreas urbanas e 62% das pessoas vivendo em áreas rurais usam as transferências via celular.
Outros países africanos registram o mesmo fenômeno – Gana, Tanzânia e Uganda, por exemplo. E no Quênia, pelo menos metade da população usa o M-Pesa, sistema semelhante ao Zaad.
Desconfianças
Nem todo mundo, porém, vê essa transição com bons olhos.
Há queixas sobre a falta de regulação e suspeitas de corrupção na ascensão da Zaad e da e-Dahab em uma economia frágil e por demais exposta à corrupção e a desastres naturais.
Em outros países, pagamentos via celular usam moeda local, mas na Somalilândia o dólar é adotado, o que aumenta a dependência em relação à moeda dos EUA.
Cambistas como Mustafá Hassan dizem que, além de seus negócios estarem sendo afetados, o sistema de pagamentos é corrupto e causa inflação.
“Esperávamos que o governo regulasse (os pagamentos) ou os proibisse, porque há muitos problemas. Apenas duas companhias controlam o sistema, e parece que elas apenas imprimem dinheiro”, diz.
“Isso está causando inflação. Todo mundo que deveria ter dinheiro no bolso agora está usando celulares, até para pagar a passagem do ônibus. E isso é feito em dólares.”
O curioso é que o próprio Hassan faz pagamentos pelo celular. Clientes podem enviar dólares eletronicamente e receber shillings em espécie.
“Facilita as coisas, as pessoas podem me mandar dinheiro rapidamente e facilmente”, admite.
Mas ele e outros colegas de trabalho ao menos contam com o fato de que nem todos os consumidores estão convencidos de que o sistema moderno é infalível.
“O celular é como carregar um banco no bolso. Você pode ser roubado. Eu sempre uso dinheiro”, diz Abdullah, um idoso e raro caso de consumidor que paga em espécie pelo khat.
“Não sei se algum dia vou passar a usar o celular (para pagamentos). É como se me perguntasse quando vou morrer. Quem é que sabe.”
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.