Por Gustavo Brigatto e João Luiz Rosa | De São Paulo
Nos últimos tempos, muita gente no setor de tecnologia tem “profetizado” o fim do computador. As vendas de PCs, da maneira como os conhecemos, de fato têm diminuído. O consumidor já não tem tanto interesse em ter uma máquina pesada ocupando espaço em cima da mesa, com fios espalhados por todos os lados. Em contrapartida, o PC passou a ser parte indispensável de vários outros produtos. Mesmo que poucos percebam, ele está no carro, no telefone celular, no caixa bancário…
A mais recente fronteira começa a ser vencida agora – é a transformação do computador em peça de roupa.
A expressão que define esse fenômeno, como a maioria das palavras no dicionário tecnológico, vem do inglês: é o “wearable computer”, ou seja, um computador que pode ser vestido. Parte das aplicações que começam a chegar ao mercado é, no mínimo, extravagante. A Cute Circuit, dos Estados Unidos, criou roupas com lâmpadas de LED que podem ser programadas para acender e apagar em uma sequência determinada. A banda irlandesa U2 já usou a roupa nos palcos, assim como a cantora americana Katy Perry, mas é difícil imaginar uma dona de casa indo à feira com o vestido literalmente aceso.
Muitos itens em desenvolvimento ou recém-lançados, no entanto, estão encontrando seu lugar no mercado. Isso é verdade especialmente no caso de produtos voltados ao bem-estar e à saúde, uma preocupação crescente entre jovens profissionais urbanos – um tipo de consumidor ligado em tecnologia e com dinheiro para gastar em novidades eletrônicas.
A americana Oakley criou óculos de esqui cujos sensores coletam dados como velocidade e localização, enquanto as roupas da Numetrex, também dos Estados Unidos, trazem sensores que marcam os batimentos cardíacos durante sessões de exercícios na academia.
Nem sempre um computador de vestir se parece com uma peça do guarda-roupa. Uma pequena esfera de metal, do tamanho de uma moeda, é a aposta da novata Misfit Wearables, apoiada por John Sculley, o homem que expulsou Steve Jobs da Apple nos anos 80. Batizado de Shine, o dispositivo ganha ares de ficção científica quando pequenas luzes se acendem em sua superfície. É o sinal de que o aparelho está trabalhando, medindo as reações do corpo humano ao se andar, correr, jogar, nadar etc.
Até agora, o computador de vestir recebeu uma mãozinha importante de seus, digamos, primos distantes – os smartphones. O crescimento explosivo desses telefones sofisticados, com acesso à internet e recursos que vão muito além de falar, contribuiu para reduzir os preços das câmeras e de diversos tipos de sensores. São componentes básicos das “roupas computadorizadas”, como as pulseiras que acompanham o nível de atividade física das americanas Jawbone e Nike, ou os relógios inteligentes da japonesa Sony.
O ritmo rápido das inovações no mercado de smartphones também ajudou no desenvolvimento de componentes mais finos e leves, que consomem menos bateria.
Essa combinação entre o ganho de escala obtido na produção dos componentes e a disponibilidade de matéria-prima mais moderna deu ao computador de vestir um impulso que, dizem especialistas, só tende a crescer nos próximos anos.
A estimativa da empresa inglesa de pesquisa ABI Research é que, em cinco anos, a quantidade de aparelhos desse tipo vai crescer mais de seis vezes. A projeção é que o número fique em 53 milhões de dispositivos no fim do ano, podendo chegar a 340 milhões em 2017.
O interesse de algumas gigantes de tecnologia, que até agora demonstraram uma sensibilidade incomum em relação aos gostos do consumidor, é um indicador de que as projeções têm grande chance de virar realidade.
Nas últimas semanas, os sites especializados atiçaram a curiosidade dos leitores com a notícia de que a Apple estaria planejando lançar um relógio inteligente, chamado iWatch. Cem profissionais estariam dedicados ao projeto na companhia da maçã. Como tudo na Apple, ninguém confirmou nada, mas o que se sabe é que a empresa registrou a patente de um aparelho semelhante em 2011.
Até o fim do ano, a expectativa é que o Google comece a vender óculos que respondem a comandos de voz. O usuário manda e o dispositivo exibe, na lente, mensagens de e-mail, mapas etc. A projeção inicial é que o Google Glass só estivesse disponível em 2014, mas a empresa já anunciou que pretende antecipar o lançamento.
O computador de vestir abre caminho para a última fronteira no campo da tecnologia pessoal. E não é o espaço sideral, como poderiam pensar os fãs de “Star Trek”. São os implantes no próprio corpo humano.
Isso já ocorre com os chips de localização para animais. Mas vantagem mesmo será quando for possível agir como os personagens de “Matrix”. Para aprender a pilotar helicóptero ou lutar kung-fu na série de cinema, bastava fazer um download diretamente para o cérebro. Imagine como seria simples aprender mandarim para encontrar um potencial sócio chinês no dia seguinte ou fazer pratos elaborados para impressionar a namorada sem nunca ter ido para a cozinha.
Novas tecnologias esquentam debate sobre privacidade
A ideia de atar artefatos tecnológicos ao corpo, mesmo que rudimentares, não é nova. O primeiro relógio de bolso, chamado de o “ovo de Nuremberg”, data de 1504. Os registros mostram que no século seguinte, os chineses já usavam um ábaco – uma calculadora primitiva – pendurado no pescoço, como se fosse um colar, ou no dedo, sob o formato de um anel.
Mas nem os alemães de Nuremberg, nem os matemáticos chineses da Cidade Proibida tinham de lidar com questões complicadas como as que envolvem o mundo on-line do computador de vestir. A mais sensível delas é a privacidade.
Quando estabelecimentos comerciais começaram a exibir o aviso “Sorria, você está sendo filmado”, muita gente não achou graça. Uma parte dos consumidores passou a se sentir vigiada, como se o comerciante suspeitasse de seu comportamento antes mesmo de qualquer delito. Havia também o receio de que as imagens pudessem ser usadas de forma indevida na internet, transformando em piada atitudes embaraçosas.
Esse tipo de invasão de privacidade passou a ser tolerada, no entanto, porque se percebeu que os registros podiam ser úteis para intimidar comportamentos indesejados e até elucidar crimes.
Em 2010, um príncipe saudita foi condenado pela Justiça britânica por ter matado seu secretário pessoal, encontrado morto em um quarto de hotel, em Londres. Uma das provas foi um vídeo do elevador, em que era possível ver o príncipe agredindo o funcionário, que apenas se defendia dos golpes. Mais recentemente, uma filmagem semelhante mostrou Elize Matsunaga deixando o prédio onde morava, em São Paulo, com várias malas. Nelas, segundo as investigações, estava o corpo de seu marido, o empresário Marcos Matsunaga. O caso ainda não foi julgado.
Nesse mundo vigiado, o acordo tácito é que vale a pena abrir mão de parte da privacidade em troca de um certo grau de segurança.
O advento do computador de vestir traz a discussão de volta à tona ao aprofundar o nível de exposição a que as pessoas estão submetidas. Os óculos Google Glass, que a companhia de internet está desenvolvendo, terão câmeras capazes de filmar o que está à frente do usuário. Em tese, uma pessoa poderá capturar e usar imagens de qualquer pessoa que ele encontrar – de amigos e parentes ao estranho que está tomando café na mesa ao lado.
Quem tem imagens divulgadas na web sem autorização prévia pode entrar com um processo para que elas sejam retiradas, mesmo que não haja nenhuma situação constrangedora envolvida. Se o vídeo tiver conteúdo embaraçoso, ou se quem publicou as imagens ganhou algum dinheiro com o material, é possível pedir indenização, explica Leandro Bissoli, sócio do escritório Patrícia Peck Pinheiro, especializado em direito digital. “Não interessa se é um local público. Trata-se de um direito constitucional”, diz o advogado.
Nem sempre captar imagens sem licença é uma ameaça ao indivíduo. Em Salt Lake City, no Estado americano de Utah, os policiais usam câmeras acopladas em roupas ou bonés para registrar a abordagem aos cidadãos. Imagine o efeito de uma medida semelhante no Brasil, onde frequentemente ocorrem relatos de abusos praticados por maus policiais.
Com câmeras espalhadas por todo lado, no entanto, fica mais fácil cometer delitos contra a privacidade, o que leva a outra questão: é necessário ou não criar leis específicas para julgar esse tipo de conduta? Parte dos especialistas diz acreditar que basta enquadrar os crimes via internet na legislação existente. O delito, para esses especialistas, é o mesmo, independentemente de ter sido cometido na web ou fora dela. Outros, porém, afirmam que a internet traz desafios específicos e, por isso, é necessário criar novas leis.
No Brasil, foi sancionada, em dezembro, a Lei 12.737, que ficou conhecida com o nome da atriz Carolina Dieckmann. A atriz teve fotos íntimas roubadas de seu computador e divulgadas na web. Pela nova lei, invadir um dispositivo eletrônico para roubar ou adulterar dados e obter vantagens ilícitas pode acarretar uma pena de três meses a três anos de detenção, além de multa.
O que mais preocupa é o vulto que os crimes contra a privacidade podem tomar em uma sociedade cada vez mais conectada.
Em 2010, nos Estados Unidos, Tyler Clementi, um estudante universitário de 18 anos, cometeu suicídio depois que teve imagens íntimas com outro homem gravadas e reveladas na web pelo indiano Dharun Ravi, seu colega de quarto. Primeiro, Ravi colocou uma câmera escondida no dormitório da universidade para filmar Clementi. Depois de conseguir as cenas, convidou outros universitários, pelo Twitter, a ver o material em um site.
Detido, Ravi foi processado e julgado por espionagem. Ao fim, foi condenado a 30 dias de prisão – saiu depois de 20 dias – e a três anos de liberdade condicional. Não houve acusações formais que o ligassem ao suicídio, mas a morte de Clementi permeou todo o episódio nos tribunais e na opinião pública americana. A pergunta é se a tragédia teria ocorrido se não fosse tão fácil disseminar, sem permissão, aspectos da vida particular de outra pessoa. (GB e JLR)
Do Valor Econômico