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Legislação precisa assegurar neutralidade da rede e fixar o Poder Judiciário como única autoridade para decisões sobre retirada de conteúdo
A Câmara dos Deputados se prepara para finalmente votar o Marco Civil da Internet, arcabouço jurídico que estabelece direitos e deveres no meio virtual.
Sem essa legislação, a rede de computadores permanece num ambiente de insegurança nada desprezível. Usuários e provedores estão desprotegidos, sem saber de antemão que regras se aplicam ao conteúdo veiculado.
O projeto de lei poderia ter sido aprovado na última quarta-feira, mas o impasse a respeito de alguns pontos levou os deputados a postergar a votação para esta semana. Seria bom que agora tomassem uma decisão, pois a proposta ainda será discutida no Senado.
A principal dificuldade da Câmara diz respeito à neutralidade da rede -princípio segundo o qual todos os dados transmitidos pela internet devem ser tratados da mesma maneira, sem privilégios relativos a origem, destino ou conteúdo.
As estradas funcionam como metáfora para entender a polêmica. Sem a neutralidade, as empresas responsáveis pelos serviços rodoviários poderiam, por exemplo, fixar diferentes limites de velocidade de acordo com o fabricante do carro ou a bagagem transportada. É fácil perceber as distorções que seriam criadas com a ausência de neutralidade.
Não é exagero dizer que, sem ela, a internet seria outra coisa, muito mais parecida com as TVs a cabo. Quem só quisesse usar correio eletrônico e redes sociais poderia ficar com o serviço básico. Acesso a portais e sites de notícias? Pacote “premium”. Baixar vídeos? “Premium extra.”
Além disso, serviços que competem com os interesses das empresas de telecomunicação poderiam ser bloqueados arbitrariamente: por exemplo, programas que fazem chamadas telefônicas pela internet, ou portais concorrentes.
Outro ponto delicado é o que trata da responsabilidade sobre conteúdo de terceiros. Alguns setores defendem que os provedores, mediante mera notificação, devam retirar do ar material veiculado de maneira supostamente ilegal.
Esse caminho levaria a restrições à liberdade de expressão e de informação. Provedores, a fim de evitar danos, teriam de optar sempre pela censura de conteúdo.
A análise de eventuais ilegalidades, inclusive a urgente proteção contra violações de direitos autorais, deve passar pelo Judiciário.
Seria lamentável se os deputados cedessem aos interesses de algumas empresas e sacrificassem a internet. A neutralidade da rede deve ser assegurada de forma inequívoca na legislação, e apenas uma ordem judicial deve ter o poder de retirar do meio virtual conteúdos julgados impróprios.
‘Constituição’ da internet vai a votação sem consenso
Polêmicas mesmo após acordo marcam tramitação do Marco Civil na Câmara
Definições sobre dar prioridade a tráfego de dados e questão de direitos autorais na rede dividem deputados
NÁDIA GUERLENDAJOHANNA NUBLAT
Após longa discussão, uma série de polêmicas adiou para hoje, na Câmara, a votação do Marco Civil da internet -espécie de “Constituição” da rede, que deveria ter sido votada na semana passada.
O texto estabelece princípios gerais para a internet brasileira, como liberdade de expressão, proteção à privacidade e a dados pessoais.
Elaborado em 2009 pelo Ministério da Justiça, o projeto foi à Câmara em 2011. Se aprovado, vai ao Senado.
O texto recebeu uma série de críticas, mesmo após acordo fechado entre deputados e o governo. Um pedido de adiamento foi feito ao presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), pelo Sinditelebrasil, que representa empresas de telefonia móvel e fixa.
O conceito de neutralidade é um dos entraves. Numa rede neutra, é proibido dar preferência para um pacote de dados em detrimento de outro -por exemplo, atrasar o download de arquivos e melhorar o acesso a um portal.
Segundo o texto do relator Alessandro Molon (PT-RJ), a rede neutra é obrigatória e eventuais exceções deverão ser regulamentadas por decreto do Executivo. Eduardo Levy, presidente-executivo do Sinditelebrasil, defende que diferentes serviços possam ter tratamentos diversos.
Há polêmica até em relação a quem regulamentará as exceções à neutralidade. Para o relator, a tarefa não deve ir para a Anatel. O ministro Paulo Bernardo quer envolver a agência reguladora.
Há ainda dúvidas sobre se o Marco Civil abarcaria a pirataria. O texto diz que o provedor não é responsável pelo que é postado na rede e que a retirada de conteúdo só ocorre após decisão judicial.
Uma mudança no texto passou a explicitar que a pirataria não é regulada pelo Marco Civil. O assunto será tratado na nova Lei de Direitos Autorais, ainda em discussão pelo governo.
O direito à guarda dos registros de acesso e aplicações é outro ponto que causa divergência. Esses dados indicam por quais páginas o usuário circulou e podem servir para fins comerciais.
O texto diz que esses dados só podem ser guardados pelos próprios sites e portais, mas há uma demanda para que provedores que conectam o usuário à internet também armazenem os dados.
O deputado Ricardo Izar (PSD-SP) reconhece o objetivo comercial do pleito, mas defende a isonomia. “Ou deixa todo mundo [guardar] ou não deixa ninguém.”
ANÁLISE
Votação do Marco Civil é decisiva para o país na área de tecnologia
RONALDO LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A Câmara pode votar hoje o Marco Civil da Internet, projeto de lei que trata de direitos relativos ao uso da rede.
O Marco Civil não trata de crimes (as leis de “cibercrimes” foram aprovadas). Ele estabelece princípios para o uso da rede, visando à inovação, proteção aos usuários e previsibilidade jurídica. O projeto já foi apelidado de “a Constituição da Internet”.
Há dois grandes temas em jogo. O primeiro diz respeito à neutralidade da rede. Trata-se de permitir ou não que provedores possam discriminar por tipos de serviço. Sem a neutralidade, a rede aproxima-se da TV a cabo. Por exemplo, podem surgir pacotes de serviço: o básico incluiria e-mail e redes sociais. O “premium” deixaria ver vídeos e ouvir música. O “superpremium” incluiria o download de arquivos. Isso hoje parece aberração. Sem a neutralidade é um horizonte possível.
Resta saber quem vai regulamentar o tema. Anatel ou decreto do Executivo? Se for decreto, há a possibilidade de fiscalização política, permeável à sociedade. Se for a Anatel, a sociedade sai de cena. A questão torna-se “técnica”, desacoplada de contrapesos.
O outro tema é a responsabilidade de sites e provedores por conteúdos de terceiros que violem direitos autorais. Nos EUA e na Europa, eles não são responsáveis, a não ser mediante um gatilho: receber notificação para remoção do conteúdo e não atender. Esse modelo tem problemas, mas foi responsável por uma década de inovação. Sem ele, sites como o YouTube, Facebook ou Tumblr jamais teriam sido criados. O Brasil tem a oportunidade de melhorar o modelo: mudar o que deu errado e usar que deu certo.
São decisões determinantes para o futuro do país quanto à tecnologia. Podemos continuar sendo meros consumidores ou teremos os alicerces jurídicos para ingressar no processo de inovação.
RONALDO LEMOS é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e do Creative Commons no Brasil
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