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A tecnologia que pode tomar decisões por nós

Tecnologia

Por Evgeny Morozov | The Wall Street Journal

Você gostaria que todos os seus amigos do Facebook examinassem o lixo da sua casa? Um grupo de designers da Grã- Bretanha e Alemanha acredita que sim. Conheça a BinCam (que se pode traduzir por “Câmara do Lixo”): uma lata de lixo “inteligente” que visa revolucionar o processo de reciclagem. A BinCam parece uma lata de lixo normal, mas com uma diferença: a tampa é equipada com um smartphone que tira uma foto a cada vez que a tampa se fecha.

 A foto é, então, enviada para o Mechanical Turk, serviço gerenciado pela Amazon que permite a freelancers realizar tarefas das mais variadas em troca de pagamento. Nesse caso, eles analisam a foto e decidem se os seus hábitos de reciclagem estão em conformidade com o evangelho da ecologia. No fim, a foto vai aparecer na sua página do Facebook. Você também ganha pontos, como em um jogo, com base no seu desempenho no desafio da reciclagem. O domicílio que conseguir mais pontos é o “ganhador”. Nas palavras de seus jovens criadores tecnológicos, a BinCam foi projetada “para aumentar a consciência do indivíduo sobre sua atitude com relação à reciclagem e desperdício de alimentos”, na esperança de mudar esses hábitos.

A BinCam tornou-se possível graças à convergência de duas tendências que vão modificar profundamente o mundo ao nosso redor. Primeiro, graças à proliferação de sensores baratos e poderosos, os objetos mais comuns podem “compreender” o que fazemos com eles – de guarda-chuvas que “sabem” que vai chover a sapatos que “sabem” que estão se desgastando. Esses objetos não são mais apenas materiais passivos, sem nenhuma inteligência. Com alguma ajuda do “crowdsourcing” (produção via inteligência coletiva) ou da inteligência artificial, eles podem ser ensinados a distinguir entre comportamentos responsáveis e irresponsáveis (por exemplo, entre reciclar e jogar algo fora) e então nos punir ou recompensar de acordo, em tempo real. E como hoje nossa identidade pessoal está firmemente atrelada ao nosso perfil nas redes sociais como Facebook e Google+, cada uma de nossas interações com esses objetos pode se tornar “social”, visível aos nossos amigos virtuais.

Essa visibilidade, por sua vez, permite aos designers explorar a pressão dos colegas: você pode reciclar e impressionar seus amigos ou não reciclar e correr o risco de ser alvo da ira coletiva. Essas duas características são os ingredientes essenciais de uma nova geração das chamadas tecnologias inteligentes, que estão atacando suas alternativas mais “burras”.

Algumas delas já estão se popularizando e parecem relativamente inofensivas, mesmo que não sejam tão revolucionárias: um relógio inteligente que pulsa quando você recebe uma nova mensagem do Facebook ou uma balança inteligente que compartilha o seu peso com seus seguidores no Twitter, ajudando você a manter sua dieta. Mas muitas tecnologias inteligentes estão indo em outra direção, mais perturbadora. Diversos pensadores do Vale do Silício veem essas tecnologias não só como uma forma de dar aos consumidores novos produtos que eles desejam, mas também de pressioná-los a se comportar melhor.

A ideia central é clara: a engenharia social disfarçada de engenharia de produto. Mas há boas razões para nos preocuparmos com essa revolução que se aproxima. Agora que as tecnologias inteligentes se tornam mais intrusivas, elas ameaçam minar a nossa autonomia ao reprimir comportamentos que alguém, em algum lugar, considera indesejáveis. O garfo inteligente nos informa que estamos comendo muito depressa. A escova inteligente nos incentiva a passar mais tempo escovando os dentes. Sensores inteligentes no carro podem nos dizer se estamos dirigindo muito rápido ou freando subitamente. Esses dispositivos podem nos dar um retorno útil, mas também podem compartilhar tudo que sabem sobre os nossos hábitos com instituições cujos interesses não são iguais aos nossos.

As seguradoras já oferecem bons descontos aos motoristas que concordam em instalar sensores inteligentes para monitorar seus hábitos na direção. Quanto tempo levará até que um cliente não consiga mais fazer um seguro para o seu carro sem se submeter a essa vigilância? E quanto tempo levará até que o monitoramento pessoal da nossa saúde (peso, dieta, exercícios) deixe de ser uma novidade recreativa e se torne algo obrigatório? Como podemos evitar nos render completamente às novas tecnologias? A chave é aprender a diferenciar entre o que é “inteligente e bom” e o que é “inteligente e mau”. Os dispositivos que são “inteligentes e bons” nos dão controle total da situação e procuram melhorar o processo de tomar decisões ao fornecer mais informações.

Por exemplo: uma chaleira com conexão para a internet que nos alerta quando a rede elétrica está sobrecarregada (um protótipo já foi desenvolvido pelo engenheiro britânico Chris Adams). Ela não nos impede de ferver água para mais uma xícara de chá, mas acrescenta uma dimensão ética a essa opção. Em contraste, as tecnologias que são “inteligentes e más” nos impedem de adotar certas opções e comportamentos. Aparelhos inteligentes nos carros de última geração – como um bafômetro que verifica se estamos sóbrios, sensores de direção que checam se estamos sonolentos, tecnologias de reconhecimento facial que confirmam que o motorista é realmente quem ele afirma ser – procuram limitar, e não ampliar, o que podemos fazer. Isso pode ser um preço aceitável a pagar em situações em que há vidas em jogo, tais como dirigir um veículo, mas devemos resistir a qualquer tentativa de universalizar essa lógica.

O “banco inteligente”, um projeto de arte dos designers JooYoun Paek e David Jimison com a missão de ilustrar os perigos de se viver em uma cidade “inteligente” demais, apresenta bem esse argumento. O banco, equipado com um relógio e sensores, começa a se inclinar depois de um tempo definido até expulsar o ocupante. Isso pode ser atraente para alguns prefeitos, mas é o tipo da tecnologia inteligente que degrada a cultura do urbanismo – e também a nossa dignidade. Projetos como a BinCam podem ser bons ou maus, dependendo de como são executados. Os projetos mais preocupantes de tecnologia inteligente partem do princípio de que os designers sabem exatamente como devemos nos comportar, de modo que o único problema é encontrar o incentivo certo. É ótimo quando as coisas ao nosso redor funcionam sem problemas, mas é melhor ainda quando não fazem isso automaticamente.

Afinal, é assim que ganhamos nosso espaço para tomar decisões – muitas delas, sem dúvida, equivocadas – e, por tentativa e erro, amadurecemos como adultos responsáveis, capazes de fazer concessões e aceitar a complexidade. Com as tecnologias “inteligentes” em ascensão, será difícil resistir ao fascínio de um futuro sem atritos nem problemas. Quando Eric Schmidt, presidente executivo do conselho do Google, diz que “as pessoas vão passar menos tempo tentando fazer as tecnologias funcionarem (…) porque elas serão perfeitamente integradas”, ele não está errado: é esse o futuro para onde estamos indo. Mas nem todos nós vamos querer ir para lá. Um paradigma mais humano de design inteligente ficaria feliz em reconhecer que a tarefa da tecnologia não é nos libertar da resolução de problemas. Em vez disso, precisamos recrutála para nos ajudar a resolver os problemas.

O que queremos não é uma vida onde o atrito e as frustrações foram cuidadosamente excluídos pelo design, mas sim uma vida em que podemos superar os atritos e frustrações que aparecem na nossa frente. As tecnologias realmente inteligentes vão nos lembrar que não somos meros autômatos que ajudam os grandes centros de informação a formular e responder perguntas.

 A menos que os designers de tecnologias inteligentes levem em conta a complexidade e a riqueza da experiência humana vivida, com suas lacunas, seus desafios e conflitos, suas invenções vão acabar na “lata de lixo inteligente” da história.

Morozov é o autor de “To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism” (“Para salvar tudo, clique aqui: A loucura do solucionismo tecnológico”, que foi lançado nos EUA em 5 de março pela PublicAffairs.

Do Valor Econômico 

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