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Proposta polêmica

Economia

Por Andréa Háfez | Para o Valor, de São Paulo 

A intenção pode ser boa, mas sozinha não basta. A proposta de criação de um novo Código Comercial tem como principal justificativa a oferta de maior segurança jurídica às relações comerciais. No entanto, o formato e o conteúdo disposto no Projeto de Lei 1.572/2011, em tramitação na Câmara dos Deputados, são encarados com receio por advogados e especialistas na área. As questões vistas com mais reserva foram debatidas no “Seminário Comissão Especial do Código Comercial da Câmara dos Deputados”, promovido pela FecomercioSP, dia 13. 

Para o advogado e professor da USP, Erasmo Valladão França, não é conveniente aprisionar as relações comerciais em um código como o proposto. Uma de suas críticas é a tentativa de abrangência muito ampla, com 670 artigos, excluídas as emendas apresentadas, que totalizariam mais de 900 dispositivos. 

Como boa parte do atual Código Comercial, de 1850, não vale mais, em razão de normas que substituíram suas disposições – principalmente o Código Civil (2002) -, um dos objetivos do projeto, segundo Armando Luiz Rovai, professor da PUC-SP e ex-presidente da Junta Comercial de São Paulo (Jucesp), é retomar uma regulamentação que ofereça princípios específicos para as relações empresariais. Há peculiaridades na área comercial, principalmente se comparada ao âmbito cível, que trata questões de caráter privado, não necessariamente relacionadas a negócios. 

“O direito comercial tem outra dinâmica e o Código Civil de 2002 não ofereceu as soluções necessárias para a contemporaneidade do mundo dos negócios, até porque se baseia no código italiano de 1942”, diz Rovai. De acordo com ele, o diploma civil, por exigir estruturas sofisticadas, trouxe insegurança e inviabilizou situações no caso dessas empresas. “Dos quatro milhões de empresas registradas na Jucesp, 1,4 milhão são empresas individuais, 2,6 milhões são sociedades limitadas e dessas, 87% são micro e pequenas empresas, enquanto os outros 13% dizem respeito a casos em que, na verdade, um sócio detém 99% do capital”, diz. 

O Código Civil, avalia, complicou esse universo de empresas. “As únicas que vão bem são as Sociedades Anônimas por terem sua legislação própria.” Para Rovai, há necessidade de mudanças nas questões societárias, mas também nas relações mercantis, com uma renovação conceitual e de princípios. “Precisamos, sim, de um novo Código Comercial.” 

De acordo com Valladão França, está sendo criado um conflito entre o direito civil e o comercial porque o PL 1.572/2011 oferece conceitos distintos e contraditórios aos já previstos no Código Civil. “É o caso da divergência entre a definição de empresário prevista no Código Civil e a apresentada na proposta de novo Código Comercial.” 

Para o jurista, bastaria uma reforma pontual no Código Civil ou um aprimoramento da atual legislação empresarial. Em sua avaliação, ao invés de oferecer mais segurança, o novo código, na forma em que está, vai trazer mais riscos e incertezas. 

O caso que chama mais atenção, nesse sentido, é o dispositivo que dá legitimidade ao Ministério Público de propor ações judiciais para anular um negócio, quando entender que função social do contrato não foi cumprida. “A função social do contrato é um conceito jurídico totalmente indeterminado e é aplicado pelo juiz no caso concreto”, diz Valladão França. A situação, em seu entender, não colabora com a busca por segurança jurídica. 

“Sem esquecer a disposição que cria a figura do facilitador”, destaca. Quando a questão a ser discutida for complexa, o juiz pode nomear um facilitador que irá entregar um relatório com a síntese do caso. “O que significa que o juiz poderá julgar sem ter lido o processo.” Para França, esse é mais um sinal de potencialização de riscos e insegurança jurídica.

O professor da USP menciona alguns pontos que precisariam de esclarecimento em uma nova legislação, por serem motivo de divergência em debates doutrinários e jurisprudenciais, mas que não foram lembrados. “A discussão sobre o conflito de interesses ser formal ou substancial, mudanças nos prazos para deliberação de estrangeiros em assembleia, são pontos que poderiam ter sido esclarecidos e simplesmente nem foram mencionados.” Daí Valladão ser a favor do arquivamento da atual proposta. 

O promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Alberto Camiña, acredita que o projeto pode colaborar com o ambiente empresarial e não concorda com a avaliação de que engessa as relações comerciais. “Um Código Comercial para o século XXI deve estar atento às cláusulas abertas para que tenha durabilidade. Não se trata de insegurança jurídica.” 

Para Otávio Yazbek, diretor da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), esse é um ponto de alerta. Segundo ele, o desenho de um código baseado em princípios não condiz com o ambiente empresarial. “No caso das relações comerciais, o efeito do uso de princípios tende a aumentar a insegurança, pois aqui há a marca da busca pela celeridade, maior certeza e redução de custos”, diz. 

“Os princípios são a porta de entrada para a interpretação dos juízes, o que não condiz com o campo dos negócios.” 

Encontrar o ponto de equilíbrio entre liberdade e regulamentação e oferecer uma segurança jurídica sem engessamento das relações não é simples, mas é algo a ser construído, avalia o jurista e advogado Arnold Wald, professor aposentado da UERJ. “É preciso buscar a conciliação. As empresas mudaram, há uma nova vivência e é necessário encontrar uma complementação entre estes aspectos, inclusive os da função econômica e da social.” 

Justiça ignora regra e mistura bens de empresa e sócios 

Por Eduardo Belo | Para o Valor, de São Paulo 

O estatuto da desconsideração da personalidade jurídica, mecanismo que impede que os bens dos sócios sejam confundidos com os da empresa, está totalmente desvirtuado no Brasil, acarretando insegurança jurídica para novos investimentos e dificultando a vida das empresas, principalmente em ações trabalhistas e tributárias. A constatação foi feita por especialistas em direito empresarial na rodada final de debates sobre a proposta do novo Código Comercial, realizado em conjunto pela Fecomércio e pela Câmara dos Deputados, em São Paulo. 

“A exceção virou regra”, disse Ivo Waisberg, professor de direito comercial da PUC-SP. “Nunca antes na história deste país um assunto foi tão desvirtuado”, brincou. Segundo ele, os magistrados costumam ignorar o princípio de que os bens dos sócios não podem ser empregados no pagamento de dívidas das empresas – a não ser em caso de dolo ou fraude -, principalmente nas sentenças trabalhistas e tributárias. 

A proposta do novo Código Comercial traz uma série de melhorias para vários pontos, “mas não vai adiantar nada” na questão da desconsideração da personalidade jurídica, disse Waisberg. Segundo ele, “a grande lição” que a proposta de um novo Código Comercial traz é a “necessidade de o direito empresarial se autoafirmar perante outros ramos do direito”. Ele também criticou a possibilidade de administradores terem de disponibilizar seus bens pessoais em caso de insolvência da empresa. A proposta do código avança na questão processual e na imputação de responsabilidades, “mas não o suficiente”. Ele defendeu que a Justiça adote o rito normal antes de penhorar os bens de um empresário ou administrador, oferecendo amplo direito de defesa. O que ocorre hoje é que o empresário não tem como reagir a esse tipo de movimento. “O sujeito vai dormir e acorda no dia seguinte com os bens penhorados”, reclamou. 

Para Nelson Eizirik, sócio fundador do escritório Carvalhosa e Eizirik Advogados, a necessidade de um novo código é duvidosa. Segundo ele, a proposta “não contribui para superar os gargalos da economia brasileira”. Ele criticou vários pontos do projeto de lei formulado pelo deputado Vicente Cândido (PT-SP), presente ao evento. Entre eles, o que cria a possibilidade de nomeação de um fiscal judicial temporário para conflitos empresariais, iniciativa que Eizirik classificou como “perigosa”. 

O advogado também se manifestou contrário à necessidade de empresas estrangeiras nominar todos os seus sócios, “diretos e indiretos, até o nível de pessoa física”, como prevê a proposta, ao realizar investimentos no Brasil. “Se for um fundo de pensão dos EUA com 5 mil integrantes vai desistir do negócio e colocar seu dinheiro em outro lugar”, exemplificou. 

Eizirik também não vê necessidade de que o código, caso venha a prevalecer, aborde questões relativas às sociedades por ações. Segundo ele, a Lei das S.As no Brasil funciona bem, está atualizada, bem disciplinada e deve ser, por suas especificidades, objeto de legislação especial, como já ocorre hoje. 

Quanto à influência do novo código nas micro e pequenas empresas, o consultor jurídico da Unidade de Políticas Públicas do Sebrae São Paulo, Paulo Melchior, disse que a proposta “melhora o enquadramento dessas empresas em relação ao que existe hoje no Código Civil”. Ao contrário de vários participantes, que consideraram “genérica” a definição de concorrência desleal na proposta, Melchior acredita que ela está “claramente tipificada”, assim como ocorre com a documentação digital e o comércio eletrônico, sobre os quais o novo código se debruça de maneira inédita. 

Ele acha importante, do ponto de vista da pequena empresa, rever o ponto em que o código estabelece o fim da intervenção da Justiça nos contratos. Segundo Melchior, esses acordos entre empresas grandes e pequenas muitas vezes configura uma “relação assimétrica” que induz a ganhos excessivos para a parte mais forte.

 

Congresso deve votar projeto no próximo ano 

Por Eduardo Belo | Para o Valor, de São Paulo 

Apesar do grande número de emendas e da série de discussões em torno da proposta, o novo Código Comercial pode estar disponível para votação no Congresso em abril ou maio do ano que vem. A previsão é do autor do projeto de lei, deputado Vicente Cândido (PT-SP). Cândido considera que esse é o tempo mínimo para que o projeto receba as emendas, seja debatido pelas comissões e fique em consulta pública por três meses. 

O autor do projeto acha que é importante votar a proposta sem atropelos, de maneira que ela venha a ser discutida de forma adequada. O que não pode é a matéria se perder em discussões intermináveis ou ser engavetada. Ele cita o exemplo do Código Civil, que foi aprovado em 2002. O projeto ficou no Legislativo por 19 anos. Quando foi aprovado, estava defasado. “Tanto que estamos discutindo temas do Código Comercial que estão no Código Civil”, afirma Cândido. 

Alguns especialistas temem que a aprovação não seja tão rápida. “Hoje não temos um código nem mesmo um projeto de lei”, afirma o advogado Francisco Satiro de Souza Junior, especialista em direito comercial e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “O original recebeu mais de 170 emendas e não sabemos como vai ficar”, diz Souza Junior. 

Cândido não vê problemas no número grande de emendas. Ele acha que o debate permite que o texto seja enriquecido com sugestões e possa passar pelo crivo de vários especialistas. Menciona como exemplo a inclusão de temas como agronegócio e direito marítimo, que estavam fora da proposta original, mas já foram contempladas por emendas. “Cabe ao relator acatar e consolidar as emendas e sugestões que forem pertinentes”, afirma o deputado. A relatoria do projeto está com o deputado Paes Landim (PTB-PI). 

Ainda que não seja no prazo estimado pelo autor do projeto de lei, a legislação será aprovada e será benéfica para o país, prevê Eronides Rodrigo dos Santos, promotor de Justiça de Falências em São Paulo. “Acredito que o código vá vingar. Não acho que as duas casas do Congresso tenham se movimentado para ficar numa discussão acadêmica”, afirma. Além da discussão na Câmara, existe uma comissão instalada no Senado já discutindo as propostas do projeto original. Santos também acredita que as discussões são “muito saudáveis” e que, ao final, vão revitalizar o direito comercial brasileiro. 

De acordo com Satiro, o novo código precisa alterar pontos importantes da norma atual que requerem melhorias para tornar o país mais competitivo e o ambiente de negócios mais seguro e ágil. Um dos aspectos que ele considera necessário melhorar é o registro e o fechamento de empresas, muito burocratizados no país. 

Mas há também avanços já na proposta inicial, afirma Oziel Estevão, diretor adjunto do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. A Fiesp vem estudando e debatendo a proposta do novo código desde que a recebeu, em 2011. Segundo Estevão, a proposta traz vários pontos favoráveis, como a desconsideração da personalidade jurídica – que impede a confusão entre os bens dos sócios e os da empresa – e o disciplinamento do comércio eletrônico. Pelo projeto original, os bens dos sócios não poderão ser penhorados para pagamentos a credores quando os bens da empresa não forem suficientes, exceto em caso de fraude. 

Oziel Estevão citou também uma revisão da questão dos títulos de crédito, cuja legislação, hoje esparsa, pode ser consolidada no novo código. Ele também elogia uma série de aperfeiçoamentos em relação ao que existe hoje no Código Civil sobre regulação das companhias limitadas. 

Entre os aspectos que precisam ser melhorados, o diretor adjunto da Fiesp cita a classificação de credores para efeito de recuperação judicial. A proposta de Vicente Cândido determina que a classificação seja feita conforme a relevância estratégica do credor para a continuidade da empresa em recuperação. Para Oziel, o conceito é correto, mas cria insegurança jurídica. Em sua opinião, seria melhor deixar a questão para a Lei de Falências, voltada para o tema. Ele também apontou um problema no conceito de concorrência desleal presente na proposta original, que precisa de uma definição mais precisa. “Está muito genérico”, diz. 

Para Fábio Ulhoa Coelho, coordenador da Comissão de Juristas do novo Código Comercial na Câmara e relator-geral da comissão do Senado, um importante avanço da proposta é a plena segurança jurídica para adoção de suporte eletrônico em toda atividade empresarial. “A lei atual já autoriza a digitalização, mas requer que a documentação seja toda assinada em papel antes digitalização”, afirma. A proposta em discussão reconhece que já há segurança para que contratos, correspondências, atas, escrituração e outros documentos sejam apenas digitais, o que vai proporcionar “uma brutal economia de custos”. 

Também na direção do corte de custos e de burocracia vai a proposta de mudança na proteção do nome empresarial. Até hoje, para proteger o nome da empresa de uso indevido, os empresários são obrigados a registrá-lo nas 27 Juntas Comerciais do país – uma por unidade da federação. Pelo texto proposto para o novo código, o registro no Estado de origem passa a ter validade nacional. 

Outro avanço, diz Ulhoa Coelho, é extinguir a atual exigência de reunião para aprovação de contas nas sociedades limitadas, que constituem 95% das empresas do país. A exigência consta do código civil de 2002, mas “não faz sentido”, segundo o jurista. “A maior parte das sociedades limitadas tem um sócio amplamente majoritário que é também o administrador e que, portanto, estaria aprovando as próprias contas. Quando há mais sócios com participações importantes, eles normalmente participam da gestão”, justifica. “Os contadores em geral cobram um salário mínimo para fazer esse acerto, que só serve para atolar as juntas comerciais de papel sem sentido.” 

Norma precisa favorecer investimento

 Falta ao Brasil uma legislação comercial capaz de dar segurança aos investidores – em especial os estrangeiros – e fomentar a criação de negócios. Por isso, uma das principais virtudes que o novo Código Comercial poderá ter é se equiparar às normas mais modernas em vigor no mundo, dizem os participantes do debate. 

“O Brasil se ressente de não ter uma legislação concentrada sobre as relações comerciais”, afirma Eronides Rodrigo dos Santos, promotor de Justiça de Falências em São Paulo. “Esse emaranhado jurídico dificulta e encarece a análise de investimentos no Brasil. Isso sem considerar a legislação tributária, também de difícil entendimento”. 

Para o promotor, a consolidação da legislação comercial é uma tendência mundial. Ele acredita que esse caminho será seguido também no Brasil. “O que permite a economia globalizada é a segurança jurídica. A Lei de Falências já obedece a isso, porque segue uma proposta do Banco Mundial. E está funcionando muito bem”. 

A preocupação de manter o código o mais atualizado possível em relação ao restante do mundo está presente também no Legislativo, afirma o deputado Vicente Cândido (PT-SP), autor do projeto de lei do novo código. Segundo ele, várias iniciativas estão surgindo ao longo do debate para que o país não fique com uma legislação defasada em relação a outros países. Uma comissão de técnicos e parlamentares será enviada à Espanha agora em outubro para analisar as mudanças propostas pelo país, que também está atualizando sua legislação comercial. 

Uma das questões debatidas é a recuperação judicial transnacional, diz o deputado. A ideia é viabilizar formas de solucionar problemas de empresas estrangeiras instaladas no Brasil, caso enfrentem insolvência em seus países, e das empresas brasileiras com negócios no exterior em recuperação judicial. 

“A ideia é fazer o que está sendo feito em outros países para que o Brasil não perca mercado”, defende o advogado Francisco Satiro de Souza Junior, professor do curso de direito da Universidade de São Paulo. Ele entende que a legislação brasileira pode ser aperfeiçoada, mas a defasagem em relação a outros países “não é tão grande”. Um ponto que merece atenção é a segurança dos contratos, hoje muito sujeita à intervenção da Justiça. “O Judiciário vai sempre intervir, mas é preciso ter regras claras para essa intervenção para que ela não se torne uma incerteza que gere custos”, afirma. 

Um dos pontos da nova proposta carentes de revisão é a burocratização da entrada do capital estrangeiro, afirma Oziel Estevão, diretor adjunto do Departamento Jurídico da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. A Fiesp tem participado ativamente das discussões do código, tendo inclusive realizado um seminário sobre o tema em agosto. 

Para Oziel Estevão, a exigência de que as empresas entrantes no país figurem nominalmente nas participações de capital em todos os níveis, direta e indiretamente, cria uma burocracia inaceitável. Uma empresa estrangeira que se associe para formar um negócio no país, por exemplo, terá de documentar a participação de todos os eventuais sócios em seu país de origem. “Precisamos simplificar”, diz. 

Na opinião do coordenador da Comissão de Juristas na Câmara e relator-geral da comissão do Senado para o novo código, Fábio Ulhoa Coelho, a proposta em discussão não se encontra defasada em relação ao que ocorre no resto do mundo. “Ao contrário. A proposta do Brasil é avançada e inovadora. É só comparar com outros países que estão também revendo sua legislação, casos da Espanha e da Argentina”. (EB)

  

Lei de Falências ainda gera conflito 

Por Viana de Oliveira | Para o Valor, de São Paulo 

Em maio, juristas que analisaram o projeto do novo Código Comercial na Câmara dos Deputados recomendaram a exclusão de previsões sobre falências. O motivo era o conflito com a já existente Lei de Falências, aprovada em 2005. Ainda assim, diversas emendas propostas ao código ainda tratam desse tema, contido no Livro 4, intitulado “Da Crise da Empresa”. 

Segundo o jurista Oziel Estevão, diretor-adjunto do Departamento Jurídico da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), há pontos em que a Lei de Falências precisa ser reformada, mas é discutível se a melhor maneira de fazer isso é por meio do novo Código Comercial ou se bastaria alterar artigos da lei já existente. 

A atual Lei de Falências (nº 11.101/2005) entrou em vigor há oito anos e sofre críticas de especialistas da área. Em julho, a agência Moody’s publicou um estudo com severas ressalvas ao funcionamento da lei. De acordo com Estevão e com o estudo da Moody’s, a Lei de Falências, tal como está, contém pontos passíveis de interpretações subjetivas.

 Ainda assim, juristas que debateram o tema das falências na proposta de novo Código Comercial, em evento na Fiesp, em agosto, consideram que eventuais alterações devam ser feitas no âmbito da lei já existente. “A lei é muito nova para já ser mudada. Os juízes e advogados ainda estão aprendendo a lidar com o código tal como está”, diz Otavio Yazbek, diretor da Comissão de Valores Mobiliários. 

“A jurisprudência ainda não foi consolidada e mudar novamente é uma má escolha, inclusive em termos de segurança jurídica”, afirma Yazbek. Para ele, a importância particular da Lei de Falências, cujas discussões envolvem o Banco Central e afetam conceitos como o risco Brasil, exige que ela seja tratada com o máximo de cuidado. 

José Vicente de Pierro, promotor de Justiça de Falências do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro da comissão de estudos sobre a proposta de Código Comercial do MP-SP, também acredita que eventuais alterações deveriam ser feitas no interior da própria lei. “As decisões vão se ajustando à lei e às circunstâncias. As cortes interpretam aos poucos cada dispositivo e, com isso, dão forma à lei”, diz de Pierro. “Esse é um processo longo, que acontece independentemente em todos os Estados e leva muito tempo até chegar ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], quando se consolida”. 

Para Estevão, da Fiesp, um dos pontos problemáticos da Lei de Falências é a obrigação que recai sobre empresas em processo de recuperação de apresentar certidões negativas de débito depois de aprovar o plano de recuperação. “Essa exigência pode inviabilizar qualquer plano. Deveria existir um prazo mais extenso para apresentar as certidões”. 

O promotor de Pierro cita como possível fonte de conflito entre a lei atual e a proposta em tramitação o artigo 73 da Lei de Falências. Nele, consta que o juiz decretará a falência de uma empresa cujo plano de recuperação judicial for rejeitado (inciso III). Um artigo proposto para o novo Código afirma que, em caso de rejeição do plano de recuperação, não há fundamento para decretar falência. 

O promotor assinala como pontos positivos do projeto os esforços de esclarecimento de conceitos presentes na Lei de Falências, como a falência de empresários individuais e o regime fiduciário. Um exemplo que ele considera importante é a extensão dos efeitos da falência. 

A inclusão de artigos que tratem de falências e recuperações judiciais ou extrajudiciais não implica, porém, que a Lei de Falências atual será revogada.

  

Debate analisa as regras de operações marítimas 

Por Andréa Háfez | Para o Valor, de Santos 

A definição sobre quem deve responder por perdas, falhas e atrasos ocorridos nas operações comerciais marítimas e os limites de responsabilidade das partes são pontos cruciais no debate sobre um novo marco regulatório para o setor. Principalmente em um ambiente em que o comércio exterior depende do transporte marítimo, como é o caso brasileiro, com mais de 95% das operações realizadas por este meio. Esse foi o pano de fundo dos debates do seminário “O Direito Marítimo e o Novo Código Comercial”, realizado pela Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados (Abtra) em parceria com o Valor, dia 3, em Santos (SP). 

Luís Felipe Galante, diretor jurídico da Associação Brasileira de Direito Marítimo (ABDM), entende que, por melhor interpretada que seja, a atual legislação – disposta no Código Comercial de 1850 – não deixa o país preparado para o século XXI. Até porque, diz, mesmo nos casos conhecidos e que estão na Justiça não há uniformidade nas decisões. 

De acordo com Galante, a Emenda nº 56 ao projeto de um novo Código Comercial (PL 1.572/2011), apresentada pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), busca trazer para o direito marítimo brasileiro o que há de moderno em outros países. “E as legislações analisadas não se atêm a apresentar princípios”, afirma. 

O ponto de maior controvérsia nos mais de 260 artigos, a limitação da responsabilidade, segundo Galante, já está presente em outras normas nacionais – como o Código Civil, a Lei do Transporte Multimodal, o Acordo de Facilitação de Transportes do Mercosul e o Código de Defesa do Consumidor. Para ele, no âmbito do direito comercial marítimo, a restrição da responsabilidade dos transportadores deve seguir na mesma direção. 

No mundo, segundo o advogado, há uma busca por políticas de incentivo para evitar o risco de redução no número de transportadores, com potencial prejuízo ao comércio internacional feito predominantemente por essa via. “Daí a importância de esclarecer e limitar o quanto será arcado pelos transportadores marítimos”, afirma. 

Os dispositivos relacionados à responsabilidade dos participantes em operações comerciais marítimas, previstos na Emenda nº 56, precisam ter a clareza necessária para evitar conflitos, na avaliação de Antônio Carlos Duarte Sepúlveda, presidente da Abtra, entidade que representa mais de 70 associados do setor de armazenamento de carga e operações portuárias.

 Para o advogado Fábio Ulhoa Coelho, a limitação da responsabilidade dos operadores do setor é a melhor saída para um dimensionamento mais adequado dos riscos e, consequentemente, dos custos e preços das operações. “Se não for limitada a responsabilidade, o transportador terá mais dificuldade de dimensionar esse risco, podendo elevá-lo ao precisar embutir esse custo e calcular seu preço”, diz. “Com a limitação, é possível trabalhar com uma previsibilidade e buscar a seguradora que conseguirá dimensionar melhor os riscos.” 

Para o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) Carlos Henrique Abrão, a emenda proposta estabelece um detalhamento que irá apenas gerar novas discussões. “Não faz sentido a proposta de um direito processual marítimo, por exemplo”, diz. 

O advogado Paulo Henrique Cremoneze, especialista no setor, avalia que o estabelecimento de limites de responsabilidade dos operadores, como no caso dos transportadores, da forma prevista na emenda, prejudicará o comércio exterior. “Há na proposta uma redução da responsabilidade dos transportadores, que implicará a elevação dos riscos de importadores e exportadores, ainda mais em um contexto, como o brasileiro, onde há poucos armadores”, diz. Se for mantida a limitação da responsabilidade dos transportadores, diz, haverá impacto negativo para balança comercial, pois não se tratará de uma distribuição de risco, mas de uma imposição de ônus. “Os terminais exportadores e importadores, donos das cargas, ficarão reféns dos armadores. Hoje, ao menos, a responsabilidade é discutida entre as partes na elaboração dos contratos.” 

O diretor jurídico da ABDM, Luís Felipe Galante, considera que a proposta não é perfeita e são necessárias reflexões. “A limitação da responsabilidade por danos pode não implicar em um menor preço do frete, mas impactará no custo fixo das empresas.”

Nova legislação pretende dividir melhor os riscos 

O principal objetivo da proposta da nova legislação comercial é distribuir da melhor forma os riscos existentes nas operações do setor entre os seus agentes, segundo o advogado, professor da PUC-SP e coordenador dos juristas responsáveis pela elaboração do texto do projeto de lei 1.572/2011, Fábio Ulhoa Coelho. “A questão é como a lei deve encarar os riscos inerentes às atividades empresariais e trabalhar a sua distribuição. Em última hipótese, estamos falando de preços de produtos e serviços no mercado de consumo brasileiro, que sofrem os reflexos da forma como os riscos podem ser dimensionados”, afirma. 

Para o deputado Vicente Cândido (PT-SP), autor do projeto, o momento de internacionalização da economia requer uma nova legislação. “São mais de 600 artigos, além das emendas relacionadas ao direito marítimo e ao agronegócio que estão em discussão na Comissão Especial”, diz. “A expectativa é de que a proposta não será votada tão rápido, mas também não pode perder o momento histórico que o país vive.” 

O deputado Paes Landim (PTB-PI), relator do PL na Comissão Especial, avalia que desde a da entrada em vigor do novo Código Civil, em 2002, a visão do Direito Comercial ficou enfraquecida, pela adoção de normas que não são focadas nas relações comerciais. “Um novo Código Comercial restabelecerá a relevância da regulamentação do ambiente empresarial, considerando o cenário global”, diz. 

Hoje, mesmo com a elaboração de contratos que tomam por base normas internacionais ou outras legislações nacionais, o risco se torna elevado na iminência da ocorrência de algum conflito entre as partes. “A discussão pode ser levada ao Judiciário para uma solução, porém, é preciso reconhecer que a matéria é muito específica e nem sempre os juízes têm o preparo necessário para analisá-las.” 

O presidente da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados (Abtra), Antonio Carlos Duarte Sepúlveda, concorda com a necessidade de uma nova legislação. “Com o livro de direito comercial marítimo, proposto pela Emenda nº 56 ao PL 1.572/2011, o que se busca é um padrão que possa pautar as relações do setor, sem engessá-las.” A preocupação de que as novas normas não inviabilizem os contratos ganha relevância por conta do contexto do comércio exterior, no qual está inserido o direito marítimo, que envolve diferentes países e empresas. “Os novos conceitos devem oferecer uma segurança jurídica em sincronia com o cenário do comércio internacional”, diz. 

O receio de engessamento ou falta de sincronia com o contexto econômico internacional é um dos pontos que colocam a necessidade de uma nova legislação comercial em dúvida. O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Henrique Abrão, questiona se um novo Código Comercial não servirá apenas para tornar as relações e as soluções de conflitos mais complexas. “As melhores legislações são as mais claras e concisas e não as mais abrangentes”, diz o desembargador, que entende que o atual projeto traz mais desvantagens que vantagens. 

Para o advogado Pedro Calmon Filho, “a proposta para um novo Código Comercial não precisa revogar o caderno sobre direito comercial marítimo, como disposto no PL 1.572/11. Assim, o direito comercial marítimo não perde a sua relevância e mantém uma legislação mínima, enquanto não há um consenso sobre novas bases.” (AH)

Limitação de responsabilidades é ponto polêmico 

Por Fernanda Pires | Para o Valor, de Santos

Representantes de terminais portuários e de importadores e exportadores avaliam que a reforma no direito marítimo, em debate no Congresso, beneficia os armadores ao transferir ao restante da cadeia responsabilidades que seriam das empresas de navegação. 

Uma emenda ao Projeto de Lei 1.572/2011 – que cria o novo Código Comercial – propõe pelo menos três mudanças que são alvo de polêmica. Limita a responsabilidade de ressarcimento do armador em caso de avaria à carga ou ao terminal; transfere riscos de retenção da carga às instalações portuárias; e expande a atuação do Tribunal Marítimo, hoje um auxiliar técnico do Judiciário em questões de segurança da navegação. 

“Tal como está é ruim. É importante que o texto defina bem a responsabilidade de cada um dos participantes da cadeia logística”, diz o secretário-executivo da Associação Brasileira de Terminais e Recintos Alfandegados (Abtra), Matheus Miller. 

Um dos aspectos mais controversos é a limitação da responsabilidade do armador, usada por outros países como incentivo à indústria da navegação. Hoje, se ocorre um dano à carga a bordo, o seguro indeniza integralmente o dono da carga e a seguradora tem o direito de buscar o ressarcimento do transportador marítimo. O mesmo vale para um dano causado ao terminal. 

Pela emenda, o limite da indenização será o valor da carga declarado no conhecimento de embarque. Mas, segundo Christian Smera, advogado especializado em sinistros, declarar o valor da carga vai redundar em “aumento exponencial” do frete marítimo e, dentro da mecânica do comércio exterior, em escalada da burocracia. 

Caso o valor não seja declinado, o teto proposto para a indenização é de 666,67 Direitos Especiais de Saque (DES) por volume ou unidade de mercadoria avariada ou extraviada, o que equivale a R$ 2.351,94, ou 2,5 DES por quilo de mercadoria. 

O advogado Paulo Cremoneze, especializado no atendimento a seguradoras, importadores e exportadores, afirma que a limitação fere a Constituição, que prevê a reparação civil ampla e integral. No limite, diz, as seguradoras serão obrigadas a aumentar o valor das alíquotas, onerando o consumidor final. O diretor jurídico da Tokio Marine Seguradora, Sérgio de Oliveira, entende que o repasse não será automático e vislumbra batalhas jurídicas. “Antes de aumentar a taxa de prêmio, o mercado segurador em geral e as seguradoras, em particular, deverão submeter tais dispositivos legais à apreciação do Judiciário, questionando a constitucionalidade de diversos itens da lei. 

Luís Felipe Galante, diretor-jurídico da Associação Brasileira de Direito Marítimo, afirma que a limitação de responsabilidade é universal dada a relevância do transporte marítimo. A associação auxiliou a elaboração da emenda apresentada pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). 

“No mundo inteiro a navegação é alvo de políticas legislativas limitando responsabilidade. É uma atividade muito dispendiosa que sofre riscos além dos que sofre uma indústria em terra firme. No mundo inteiro sempre existiram e vão continuar existindo incentivos”, diz Galante. 

Para Smera, o argumento é fraco. “Então médicos, advogados, motoristas de ônibus também precisam ter a responsabilidade civil limitada porque são atividades sociais de importância relevante”, diz. Isso valeria, afirma, para os países com enormes frotas de marinha mercante e que têm interesse em proteger esse segmento. “O Brasil está no polo diametralmente oposto. Não temos uma marinha mercante forte. É falacioso dizer que isso vai beneficiar o Brasil, vai beneficiar o interesse estrangeiro em detrimento do nacional.” 

O diretor-executivo do Centro Nacional de Navegação (Centronave), Claudio Loureiro, diz não haver “evidências concretas” de que a limitação de responsabilidade teria impacto negativo no seguro de carga. “Muito ao contrário, a experiência internacional demonstra que ela reduz um dos maiores custos operacionais dos armadores – aquele com seguros de responsabilidade – o que poderá favorecer os níveis de fretes e beneficiar o usuário.” O coordenador da comissão de juristas do novo Código Comercial, Fábio Ulhoa Coelho, segue a mesma linha. Para ele, a limitação de responsabilidade do transportador obrigará o importador a correr atrás de um seguro que irá “dimensionar e socializar” os riscos, tendendo a ser “muito mais barato do que aquele ‘sobrevalor’ que o transportador teria de acrescentar [ao frete]”. 

Outra crítica é a expansão da atribuição do Tribunal Marítimo. Segundo o advogado Thiago Miller, o texto oferta ao Tribunal Marítimo um poder jurisdicional, apesar de ele ser um órgão administrativo e auxiliar do Judiciário. “Enquanto o processo corre no Tribunal Marítimo não pode ser ajuizado. Se tiver de ser ajuizado tem de ser suspenso e os juros correm a 0,5% ao mês. Isso é inconstitucional, é ilegal. Estamos entregando ao Tribunal Marítimo a hierarquia, ele é o senhor absoluto da prova.” 

O desembargador Carlos Henrique Abrão, do Tribunal de Justiça de São Paulo, concorda que a emenda cria um direito processual marítimo e critica a reforma por meio de uma emenda. “Não podemos elaborar uma legislação que contemple quase 270 artigos do direito marítimo. Precisamos elaborar princípios lógicos e acabar com esse casuísmo.”

 

Fonte: Valor Econômico

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