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O Supremo Tribunal Federal debate o artigo 19 do Marco Civil da Internet

Tecnologia

Por Francisco de Mesquita Laux

  1. Introdução
    Participar desta coluna é uma grande honra. Agradeço, especialmente, ao professor Otavio Luiz Rodrigues Junior pelo gentil convite e pela oportunidade de tratar de tema da mais absoluta relevância. Acrescento, ainda a título inicial, que as ideias aqui tratadas foram construídas por meio de debates durante a disciplina “Direito, Processo e Tecnologia”, ministrada pelos professores Otavio, Paulo Henrique dos Santos Lucon e Juliano Maranhão e dirigida aos alunos do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Faculdade de Direito da USP.

Em 4 de dezembro, o STF irá definir se o caput do art. 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) é constitucional. O julgamento ocorrerá por meio da apreciação do tema de repercussão geral 987, vinculado ao leading case selecionado: o RE 1.037.396/SP, relatado pelo Ministro Dias Toffoli. O dispositivo legal contém a seguinte redação: “Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”. A discussão que se coloca no RE tem relação com a constitucionalidade da imposição de “necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros”.

A presente opinião tem o objetivo de repercutir e debater a controvérsia sob algumas perspectivas. Em especial, é importante definir (i) como se desenvolve um conflito originado de postagem de manifestações da internet, (ii) de que modo essa espécie de debate é regulada em outros países e, ainda, (iii) qual a lógica da solução adotada pelo legislador brasileiro. Com base nisso, será possível apresentar considerações sobre a constitucionalidade do dispositivo legal.

  1. Como se desenvolve um conflito originado de postagem de manifestações na internet
    A internet, em termos bastante resumidos, pode ser retratada como uma rede interligada de terminais (computadores, tablets, smartphones etc.) individualizados por protocolos específicos (IP), criada no objetivo de permitir a transmissão de dados de um terminal. Esse é, basicamente, o conceito legal trazido pelo art. 5º, I, II e III, do MCI.

A estrutura que suporta a rede foi construída a partir de um design “end-to-end” (e2e ou ponta-a-ponta). Isso significa dizer que os equipamentos que fazem a rede operar são responsáveis por cumprir funções “simples”, ligadas à transmissão de pacotes de dados. O diferencial da internet está nas pontas, ou seja, nas máquinas e programas que acessam a rede. Exemplificando: para que a Apple comercialize um IPhone com novas aplicações, nenhuma alteração relevante precisa ser realizada na estrutura da internet. Da mesma forma, para que a Google disponibilize uma atualização do Maps, nada precisa ser alterado na rede. Para que a pessoa X, que possui um computador pessoal conectado à internet, crie, desenvolva e disponibilize o programa Y, a liberdade é idêntica.

Redes sociais e ferramentas de postagem foram concebidas muito por conta dessa liberdade de criação. São essas ferramentas que permitem a criação de perfis virtuais e a inserção, pelo interessado, de determinado conteúdo na internet.

Quando se fala, nesse contexto, em postagem de materiais na rede – textos, vídeos, fotos etc. –, é possível imaginar uma relação entre ao menos duas pessoas: (i) o autor da postagem e (ii) o provedor da aplicação que possibilita a inserção daquela informação na internet. Há situações em que a participação de tais sujeitos pode se confundir – como, por exemplo, com jornalistas na condição de prepostos de um órgão de imprensa. Usualmente, contudo, essa diferença entre personagens fica bem definida. É o que acontece, por exemplo, no caso de redes sociais como o Facebook e o Twitter: pessoas sem vinculação de natureza trabalhista ou societária acessam tais aplicações por intermédio da concordância com termos de serviço e, a partir daí, passam a inserir manifestações na internet sem controle editorial prévio.

A partir do momento em que postada por alguém, a manifestação específica passa a ser objeto de inspeção pelos demais usuários da rede, que têm à disposição a faculdade de elogiar, criticar ou demonstrar indiferença em relação ao conteúdo. Há ferramentas que permitem que isso seja feito por comentários ou, ainda, por atos mais simples, por meio de cliques que demonstram aprovação ou desaprovação com a postagem.

Considerada a perspectiva até agora construída, não fica difícil perceber que um conflito jurídico advindo da postagem de manifestações na internet contará com a participação, em regra, de três sujeitos. No polo ativo, estará a pessoa ofendida. O polo passivo irá contar com o provedor da aplicação utilizada para inserção da informação na rede e, ainda, com o autor da postagem. A título exemplificativo, deve-se destacar que, no Reino Unido, por conta do Defamation Act e das Defamation Regulations, ambos de 2013, tais personagens são conhecidos como o ofendido (complainant), o operador do site (operator of a website) e o autor do conteúdo (poster).

  1. Quais os abusos mais recorrentes no âmbito da postagem de manifestações na internet
    A partir do momento em que construímos relações na internet, passamos a contar, e mais do que isso, a ter que prezar também por nossa reputação online. A imagem de alguém na internet é construída, basicamente, por dois processos: (i) o primeiro, por meio da exposição da própria pessoa; (ii) o segundo, por intermédio daquilo que é dito por outros. Nem sempre, contudo, a construção da reputação se dá por intermédio de atos lícitos, seja porque a própria pessoa se vale de condutas abusivas na internet, seja porque outros sujeitos se utilizam de subterfúgios inadmitidos em lei para afetar aquele sujeito.

3.1. Os perfis falsos
A criação e postagem de manifestações em perfis falsos é uma maneira efetiva de prejudicar a reputação online de alguém Isso se dá porque a comunidade de usuários da rede social imagina que a própria pessoa objeto do ilícito está praticando tais atos na internet. Há, portanto, uma presunção de credibilidade a respeito daquilo que está ocorrendo na web e, nesse contexto, um potencial altíssimo de invasão prejudicial na esfera jurídica do envolvido. Estima-se que, atualmente 5% (cinco por cento) das contas existentes no Facebook sejam falsas. Tais perfis são criados, basicamente, com dois propósitos:

(i) Alguns usuários de redes sociais buscam criar identidades falsas, mediante a utilização do nome e imagem de outras pessoas ou organizações, especialmente no objetivo de fingir ser ou falar por outras pessoas e enganar o público sobre a origem das manifestações postadas por aquela conta.

(ii) Há, ainda, contas criadas no objetivo de possibilitar aquilo que o Facebook denomina “comportamentos não autênticos coordenados” (Coordinated Inauthentic Behavior). Tais perfis trabalham para gerar uma sensação de veracidade ou falsa importância (o conteúdo pode não ser inverídico, mas ganhar notoriedade artificialmente) a respeito daquilo que, de maneira coordenada e em massa, é postado por intermédio dessas contas na rede social. O ilícito, neste caso específico, está na construção da rede em si, inclusive por intermédio de financiamento privado, no objetivo de criar uma situação de repercussão artificial a respeito de determinados assuntos. Daí porque, em tais situações, redes sociais removem de seus servidores toda a rede mapeada, não apenas uma postagem ou perfil específico.

3.2. A difamação virtual
A difamação na internet ocorre quando, por meio de uma postagem, há ofensa à reputação – i.é., à imagem, à estima construída pelo público a respeito de determinada pessoa. No direito comparado, a Seção 1 do Defamation Act de 2013, em vigor no Reino Unido, descreve que uma declaração é difamatória quando tenha causado ou possa causar dano grave à reputação do ofendido. A Seção descreve, ainda, que organizações com finalidade econômica somente sofrerão difamação quando a declaração sob exame tiver causado ou puder causar sérios prejuízos financeiros. No Brasil, a ilicitude de condutas difamatórias é extraída, especialmente, daquilo contido no art. 139 do CP, segundo o qual difamar alguém significa imputar fato ofensivo à reputação do envolvido.

Uma matéria de defesa bastante aventada em casos que discutem difamação tem vinculação com o interesse público da matéria sob debate. A diferenciação aqui, usualmente, ocorre por meio da concepção de esferas como a “arena pública” e a “arena privada”, esta última vinculada à intimidade, à honra e à vida privada da pessoa envolvida. Agentes públicos possuem, em regra, uma esfera privada mais restrita e, além disso, a jurisprudência releva em considerável medida excessos de estilo dos autores.

3.3. As notícias falsas
Notícia objetivamente falsa é aquela que não guarda vinculação com a realidade É, ainda, aquela nota que, em algumas situações, conscientemente não se preocupa com a verdade porque a sua intenção é a de desinformar. É a isso que se dá o nome de “fake news”.

Os casos mais conhecidos de postagens com conteúdo falso são, (i) na esfera da imprudência, aqueles que se valem de informações imprecisas e indevidamente checadas, e, por sua vez, (ii) na esfera do dolo, (ii.i) aqueles que inventam ou distorcem dados para construção de narrativas e, ainda, (ii.ii) aqueles que negam determinada ocorrência histórica (como, por exemplo, o holocausto) no intuito de prejudicar uma pessoa ou grupo de pessoas. Postagens que distorcem ou negam a ocorrência de fatos históricos – esfera do dolo, portanto – são usualmente inseridas na rede com o propósito de fomentar discurso ou incitamento ao ódio (hate speech).

3.4. Conteúdo de nudez ou de teor sexual sem consentimento
A divulgação não consentida de imagens privadas – usualmente conhecida como pornografia de vingança – atinge, majoritariamente, mulheres jovens. Os arquivos são compartilhados, em sua grande maioria, por aplicativos de conversação em tempo real e, em pouquíssimo espaço de tempo, a difusão de conteúdo alcança uma repercussão altíssima.

Como será visto adiante, a gravidade da situação foi mapeada pelo legislador brasileiro de modo a possibilitar a construção de uma hipótese especial de responsabilização civil dos provedores de aplicações da internet (art. 21, MCI). No caso, a conduta geradora não tem vinculação com um processo judicial, mas sim com o desatendimento a um protocolo extrajudicial com pedido de remoção.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)

Francisco de Mesquita Laux é doutorando e mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP; vice-diretor de Processo e Tecnologia e Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogado e Professor.

Revista Consultor Jurídico, 4 de novembro de 2019

https://www.conjur.com.br/2019-nov-04/stf-debate-artigo-19-marco-civil-internet

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