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Apertem os cintos, o motorista sumiu

Tecnologia

Por Gustavo Brigatto e João Luiz Rosa | De São Paulo

Desde 1908, quando Henry Ford começou a produzir carros em massa, muita coisa mudou na concepção dos automóveis e na maneira de produzi­los, mas nenhum avanço parece tão radical quanto o que o Google e outras grandes empresas de tecnologia estão propondo agora: aposentar o motorista. Os projetos variam entre si, mas indicam um ponto em comum: os carros autônomos, que são controlados por software e dispensam a intervenção humana. O objetivo final é que as pessoas simplesmente entrem em seus automóveis e digam qual o destino. A partir daí, sonham engenheiros e designers, o veículo assume o controle. Isso vai demorar. O esforço para automatizar os carros está dividido em cinco grandes ciclos. Os três primeiros ­ numerados de zero a dois ­ já foram alcançados, embora só sejam perceptíveis em parte da frota, formada pelos modelos mais sofisticados. Um dos recursos do nível um é o piloto automático, pelo qual o motorista define uma velocidade máxima a que carro obedece. A fase dois, a mais avançada disponível atualmente, é a combinação de dois ou mais sistemas como esse. A previsão é que a indústria automobilística chegue à terceira etapa em quatro anos. É a partir daí que a interação humana começará a ser menos exigida. A autonomia será limitada. Os carros vão poder circular em áreas específicas, já mapeadas, sem que o motorista faça tanto esforço, embora tenha de ficar atento a situações específicas para retomar o controle do carro. Só no nível 4 é que o automóvel poderá tomar sozinho todas as decisões. Mas não há sequer previsão de quando esse cenário será realidade. É uma corrida contra o tempo. Diversas companhias estão trabalhando no desenvolvimento de sensores e softwares capazes de realizar esse trabalho, mas a escala de evolução tecnológica nem sempre é tão rápida quanto os técnicos gostariam que fosse. Além disso, conceber um carro cem por cento autônomo significa redesenhá­ lo completamente. O Google, que tem um dos projetos mais avançados, argumenta que itens como espelhos retrovisores não serão necessários e que os freios, por exemplo, seriam um risco, já que o passageiro poderia interferir na condução do veículo, criando algum tipo de problema. É curioso que a inovação nessa área tenha partido dos grupos de tecnologia e não das montadoras. Além do Google, estão na vanguarda outros grupos americanos como Apple, Uber e Nvidia, além da chinesa Baidu. Esse quadro ilustra um dilema típico da inovação: as empresas que dominam um determinado negócio costumam ter muita dificuldade para modificá­lo, porque temem colocar em risco sua própria existência. As gravadoras demoraram a se render ao formato digital, e só reagiram depois de constatar que a Apple havia se tornado a maior vendedora de música do mundo. A Kodak, que inventou o sensor digital nos anos 70, não se aproveitou dessa criação e assistiu a seu negócio de filmes e papel fotográfico praticamente desaparecer com o advento da fotografia digital. Não que as companhias de tecnologia tenham a ambição de ser montadoras. A lógica do negócio, para esses grupos, é outra: tornar­se parte indissociável de uma cadeia de produção mais ampla, com a possibilidade de vender tecnologia para diferentes elos da corrente, ou, simplesmente, fixar­se como referência em produtos de uso massivo. É o que o Google fez no campo dos smartphones com o sistema operacional Android, que está presente em 80% dos aparelhos no mundo. A meta da empresa não é fazer dinheiro diretamente com o Android, mas dominar o que está ao redor, como os aplicativos para celular. As montadoras começam a reagir. No início do ano, a japonesa Toyota apresentou em Las Vegas, na CES ­ a maior feira de tecnologia do mundo ­, seu instituto de pesquisa em robótica e carros autônomos, identificado pela sigla TRI. São duas unidades: uma perto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em Boston, e outra próxima à Universidade Stanford, na Califórnia. Na mesma CES, a Ford anunciou que está triplicando o número de veículos usados em testes para desenvolver um modelo autônomo. Ao investir em tecnologia, as montadoras tentam se manter no jogo, mas o desenvolvimento dos sistemas pode alterar profundamente seu foco. Um dos cenários traçados por executivos do setor é que o advento do carro autônomo reduza o volume de unidades vendidas. O consumidor não teria tanto interesse em ter seu próprio veículo, ainda mais com o avanço da economia compartilhada, em que os recursos são divididos por várias pessoas. Nesse caso, as montadoras passariam a fornecer veículos principalmente a empresas como o Uber, ou a criar seus próprios serviços de compartilhamento. A GM deu esse passo no mês passado, com o Maven, um concorrente do Uber. Outra hipótese que começa a ser discutida é que as montadoras se especializem no desenho dos veículos, mas transfiram a produção ­ que é cara e complexa ­ para outras empresas, como já acontece no mundo dos eletrônicos. Eliminar a pessoa por trás do volante não tem implicações apenas nos campos tecnológico e de negócios. É preciso pensar no impacto em hábitos culturais, além de questões legais. No caso de um acidente, por exemplo, quem deve ser responsabilizado, já que o carro dirige a si mesmo? No início do mês, a Agência Nacional de Segurança nas Estradas, que regula o assunto nos Estados Unidos, determinou que qualquer coisa ­ e não necessariamente uma pessoa ­ capaz de dirigir um carro deve ser considerada seu motorista. No futuro, leitor, quem sabe se suas multas não serão pagas por algum grupo de tecnologia.

 

Fonte: Valor Econômico

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